sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Projeto Nós os Imigrantes


Texto de Referencia


Estou participando do Projeto Nós os Imigrantes do grupo MiniBrasil. E o meu tema é Kitanda.

Nele vou contar um pouco das minhas origens e por que não dizer um pouquinho também da origem de todos nós brasileiros, afinal quem não tem um pouco de sangue negro ou italiano nas veias?

Escolhi o temo por causa do texto abaixo, quando vasculhava a net pesquisando sobre os imigrantes. Achei maravilhoso o texto e tudo encaixava perfeitamente na proposta do projeto.



Da Kitanda à Quitanda


Em Angola, vendedoras de rua agitavam o comércio urbano e supriam o tráfico de escravos. No Brasil, as "quitandeiras" ganharam outros significados.





 Cercadas por montes de ovos, laranjas, bananas, mangas, batatas, galinhas, patos vivos e uma infinidade de outros gêneros, vendedoras negras com trajes vistosos, agachadas sobre os calcanhares, fritam peixes e bolinhos de feijão, preparam petiscos de carne-seca ou carne de porco nas panelas colocadas em pedras sobre lenha. Enquanto isso, uma pequena multidão de fregueses aguarda ansiosa para comprar e comer as delícias saídas do fogo. E ainda aproveita para se servir dos jarros e cabaças com bebidas fermentadas, extraídas do caule da palmeira de dendê, do milho ou do abacaxi..




Cenas como esta poderiam ocorrer nas ruas de Salvador ou do Rio de Janeiro séculos atrás. Mas antes de aportarem no Brasil, as “quitandas” eram um fenômeno tipicamente africano. Espalhados por todo o continente, esses espaços de troca ficaram conhecidos, na região centro-ocidental da África, e mais especificamente entre os povos mbundu, como kitanda. 





À sombra do grande tráfico atlântico de escravos – que envolvia reis, mercadores e administradores –, o pequeno comércio de gêneros alimentícios abastecia cidades litorâneas, portos e até mesmo os navios negreiros. Para garantir a alimentação dos escravos durante a longa viagem até as Américas, os traficantes adquiriam farinha e peixe seco com as quitandeiras de Luanda, capital de Angola, em locais como a Quitanda da Caponta, a Quitanda da Fazenda, o Largo da Alfândega e a Quitanda Grande. E nem só de comida viviam elas. Vendiam de tudo, e muito: tecidos, linhas, contas, agulhas, facas, pratas, pires, copos, canecas, moringas, garrafas, espelhos...




A aparente confusão daquele agitado comércio urbano escondia uma atividade bastante organizada. As quitandeiras se dividiam conforme suas especialidades: havia mulheres que só vendiam peixe, outras que ofereciam apenas comidas prontas e as que se dedicavam aos chamados “produtos da terra”, como amuletos, pemba (argila branca usada em rituais religiosos), liamba (cânhamo) e macânha (tabaco). As peixeiras formavam uma espécie de cooperativa com profundos laços de solidariedade e conseguiam prestar auxílio às colegas menos afortunadas. Na época do parto, as mães podiam ficar um tempo com os filhos e só depois retornar ao trabalho. Assim como elas, havia outras associações por ramo de negócio, como as que reuniam as vendedoras de batata-doce (Akua-Mbonze), as de tabaco (Akua-Makanha) e as “coleiras”, que vendiam gengibre e cola – uma fruta com efeitos estimulantes consumida em todo o continente africano. Dependendo da origem étnica, elas se diferenciavam pelo colorido de seus adereços e roupas. Os tipos de tecidos usados também demarcavam as diferenças entre as quitandeiras mais ricas, proprietárias do negócio (mukwa) e suas funcionárias (mubadi).


A kitandas viraram quitandas quando as práticas dessas vendedoras atravessaram o Atlântico a bordo dos navios negreiros. Mas, por aqui, o negócio adquiriu outros contornos. Mulheres negras, escravas, forras e livres armavam seus tabuleiros nas ruas de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e até no interior de Minas Gerais, vendendo produtos alimentícios e utilidades para o cotidiano dos habitantes. À primeira vista, já se diferenciavam das angolanas pela diversidade de trajes e adornos. Afinal, o fluxo de pessoas no Brasil Colônia era de origem muito diversificada: vinha gente de todas as regiões africanas.


Os territórios das quitandeiras logo viraram pontos de referência nos centros urbanos. Em Salvador, no século XVIII, ficou conhecida a Grande Quitanda – que ocupava um belo prédio com o nome de Morgado de Mateus e era o centro da vida comercial da cidade. Até hoje, na Baixa dos Sapateiros, podem ser vistos os vestígios da Grande Quitanda. Em São Paulo, os tabuleiros enchiam a Rua da Quitanda Velha, enquanto no Rio, já no século XIX, a maioria das casas varejistas situava-se na Rua da Quitanda. No Mercado da Praia do Peixe ficavam as negras que vendiam angu, que seriam descritas pelo francês Jean-Baptiste Debret. 

A intensa migração naquele século fez com que as vendedoras da capital da Corte ganhassem concorrentes no comércio de rua. Mulheres vindas da Bahia, vestidas com roupas e turbantes brancos e enfeitadas com balangandãs, começaram a chegar à cidade na década de 1830. Desde então, as “baianas” – que nem sempre eram baianas de fato, mas ganharam esse nome genérico pela forma como se apresentavam – desbancaram as “quitandeiras” como personagens dos relatos urbanos da época.

Na Região Centro-Oeste, a quitanda ganhou outro sentido: era um espaço de venda de doces ou pastelaria, onde mulheres africanas, escravas ou forras, adaptavam receitas portuguesas com ingredientes bem brasileiros. Ainda hoje é possível encontrar, na cidade de Goiás Velho, pastéis tipicamente portugueses com recheio de doce de coco ou abóbora. Já o termo “quitandas”, no plural, não tinha nada a ver com um local de comércio – designava os sequilhos, biscoitos caseiros, feitos por cozinheiras negras, que acompanhavam o chá, o café ou o leite.Enquanto em Luanda esse tipo de comércio era uma atividade essencialmente feminina, no Brasil as quitandas também eram ocupadas por homens. No Rio de Janeiro, curiosamente, foram os portugueses que mais se destacaram como quitandeiros, uma figura que não existia originalmente em Portugal.

Embora fossem fundamentais para as redes de comércio urbano, os mercados ao ar livre desagradavam às autoridades, dedicadas a clarear e “higienizar” os meios urbanos. Tanto em Angola como no Brasil, o mau cheiro e o barulho das quitandas passaram a ser vistos como incômodos a serem superados. Aos poucos, elas tiveram que deixar os largos, becos e travessas para se abrigar em espaços demarcados. Desde o século XVII, a Câmara de Luanda tentava regulamentar esse comércio, obrigando as quitandeiras a tirar licenças e cobrando multas das ilegais. No século XIX, foram erguidos prédios modernos para o funcionamento do pequeno comércio. 

Ainda assim, as quitandeiras continuaram a marcar os centros urbanos. Na moderna Angola, as zungueiras são suas herdeiras diretas, perambulando pelo confuso e variado comércio das ruas. Uma das fantasias de carnaval mais usadas pelos homens até hoje é justamente o traje típico da vendedora de quitanda. Nas metrópoles brasileiras, onde o comércio ambulante diversificou-se e já não se identifica como uma atividade feminina, restam como legado das quitandeiras os nomes de ruas e espaços públicos. Sem falar do eterno talento popular para a organização de seu próprio negócio, o jeito para a barganha e a sedução dos fregueses com sabores, cores e sons.
Texto original de Selma Pantoja.


****Selma Pantoja é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília e autora de “A dimensão atlântica das quitandeiras”. In: Júnia Ferreira Furtado (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino português. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, v.1.
Saiba Mais - Bibliografia:
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Padeiras e Quitandeiras da Vila: a Resistência contra o Fisco”, in Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995.
HENRIQUES, Isabel Castro. Território e Identidade. A construção da Angola Colonial (1872-1926). Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004.
SANTOS, Ana de Sousa. “Aspectos de alguns costumes da população luandense”. Boletim do Instituto de Investigação Científica de Angola. Luanda, 7 (2): 1/72, 1970.
A cola e seus sentidos
A cola (Cola accuminata) é uma fruta de sabor meio amargo, muito apreciada por povos de todo o continente africano. Curiosamente – ao contrário de produtos como marfim, gengibre, dendê, cera e escravos –, a cola nunca foi elevada à categoria de produto de exportação internacional. Sua comercialização ficou restrita à África.   Utilizada para mascar, tem efeitos estimulantes e é tão apreciada quanto o tabaco. Também cumpre uma função nos códigos do jogo do amor: se oferecida inteira, significa afeto, amizade; um pedaço bem pequeno quer dizer um amor novo; um pedaço mordido (com marca dos dentes) é prova de amor ilícito; e a oferta de uma parte da fruta significa amor correspondido.
Delicatessen
Algumas quitandeiras se especializavam em produtos para paladares mais apurados. Em seus cardápios havia iguarias como:
Dangu ya dixi — bagre de água doce defumado
Ngwingi ya dixi — bagre preto defumado
Kabwenya yasalakalu — peixe seco
Kikusu yasalakalu — cacussu (uma espécie de tilápia) seco
Feja ni maji ma ndende — feijão com óleo de palma (dendê)
Jindose já makoko — doce de coco
Jindose ja jinguba — doce de amendoim
Funji — fina massa de milho ou mandioca
 Roupas que falam
As quitandeiras angolanas costumavam exibir trajes coloridos. O preto costumava ser adotado somente pelas viúvas – um luto que incluía o rosto coberto e a cabeça raspada. Mas a colonização portuguesa influenciou na mudança das roupas populares. Entre as vendedoras de Luanda, a cor preta passou a ser vista com mais freqüência – em adaptações das vestimentas européias, mais especificamente das feiras portuguesas do período. O vestuário das ricas senhoras que transitavam pelas ruas de Luanda era formado por um total de quatro panos: o mulele ua jiponda (peça interior), o mulele ua xaxi (pano transpassado cobrindo a parte superior), depois o mulele ua tandu (tecidos transpassados na parte inferior) e finalmente um pano preto conhecido como bofeta. Isso e mais uma série de acessórios, peças menores e coloridas, de formatos diferentes, que davam o acabamento final ao vestuário. As referências européias ajudavam a demarcar a hierarquia social e étnica dos grupos, mas preservando muitos costumes africanos. Os pés descalços, por exemplo, igualavam todas as quitandeiras. 

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